Carta de S. Valentim
De: Um gajo qualquer
Para: Uma gaja qualquer
Gaija,
Esperei ardentemente por este dia, o dia em que finalmente me declararia. O dia em que eu diria o que me vai na alma, no qual os quatros ventos e mais duas ou três correntes de ar levariam as minhas palavras da minha boca aos ouvidos desse mundo fora. Espero que tenhas limpo os teus. Se calhar nem precisas de limpar porque, vendo bem, isto está escrito e não vais ouvi-lo, vais lê-lo, se souberes ler.
Onde é que eu ia...? Ah, ia-me declarar. Deves estar a pensar «Ah e tal eu tenho um pretendente e tal e o gajo gosta de mim como o caraças e vamos casar e ser felizes para sempre e o camandro!...» Eh pá, eu primeiro tenho de ir lavar as mãos porque a minha mãe sempre me disse que antes de se casar e ser feliz para sempre tinha que se lavar as mãos. Ou era para comer? Não, era para casar e ser feliz para sempre porque depois podem-se ingerir micróbios e bactérias daquelas verdes, viscosas, que parecem ranho daquele mesmo muito verde e mesmo muito viscoso. Até enoja um bocado. Dá vontade de vomitar. Mesmo daquele vómito verde e viscoso. Daquele que parece ranho. Daquele ranho mesmo muito verde e mesmo muito viscoso.
Mas vou directo ao assunto, isto porque eu sou um gajo directo, não gosto cá de rodeios! Rodeios são para totós! Só os totós é que andam à volta do assunto e a falar de outra cenas que não interessam e à roda e nunca vão directos ao assunto. Eu não posso com esses gajos. Se um individuo dessa classe de tamanha covardia, que o impede de declarar o que deseja, utilizando para tal o recurso a técnicas de evasão numa amena e vulgar conversação, me surgisse no caminho reuniria no meu pulso toda a força condigna para, num acto de revolta e promíscua vingança, lhe quebrar os dentes! Esses gajos fazem-me vomitar! Mesmo daquele vómito verde e viscoso. Daquele que parece ranho. Daquele ranho mesmo muito verde e mesmo muito viscoso.
Mas, adiante. O que eu sinto por ti é muito forte. Quase tão forte como uma cólica. Mas a cólica com dois ou três puns passa. O que eu sinto por ti, não. Tu és a mulher perfeita. Quer dizer, se não fosse a celulite, eras a mulher perfeita. Ou melhor, se não fosse a celulite e o cabelo oleoso, eras a mulher perfeita. E lavar os dentes também ajudava, mas não vou dizer isso. Era muito ofensivo. Até podias levar a mal. Por isso, não vou dizer que devias lavar os dentes.
Mas sendo directo como eu gosto. Foi com uma pujante força interior que reuni coragem necessária para te escrever esta carta, e não pretendo de modo algum aguardar que tal força se desvaneça. Por isso, é com todo o meu sentimento que confesso: não me lembro qual o assunto que me levou a escrever esta carta. Mas não desanimes, com certeza que terá sido um belo motivo.
Um aceno. Daqueles de longe.
FT, NF